Thriller policial

Trama Digital – Capítulo 2

Reencontros

31 de janeiro de 2024

Teresa o esperava na recepção. Abraçou o filho cheia de saudades. Cris aconchegou-se no abraço da mãe, embora não gostasse muito de demonstrar isso. Assinaram os documentos de liberação e saíram.

— Vida nova, né, filho? — disse a mãe esperançosa ao abrir a porta do apartamento.

— Vida nova, vida nova. Mas agora vamos — e foi em direção ao seu quarto.

Cris retornou ao seu quarto, buscando a sensação de liberdade que tanto prezava. Ali, onde sua mãe acreditava que ele se isolava, era o lugar onde ele se sentia verdadeiramente livre. O ambiente estava meticulosamente organizado, refletindo a personalidade de Cris e suas paixões.

Ao entrar, já se deparava com uma mesa ampla de aproximadamente um metro e meio, equipada com suportes para seu notebook, na parede esquerda. Abaixo da mesa, quatro gavetas proporcionavam espaço adicional. Sobre a mesa, um drone descansava ao lado do carregador de celular. Acima da mesa, um painel de 50 por 50 cm exibia um conjunto de peças Lego cuidadosamente montado. Super-heróis como Homem de Ferro, Hulk (quebrando um muro), Capitão América (com seu escudo), Homem-Formiga (com a Vespa em seu ombro), Loki (pilotando uma nave) e Thor (segurando o Mjolnir) ocupavam esse espaço. Também havia uma pequena parte do topo da Torre dos Vingadores com seus equipamentos e o grande logotipo com “A” maiúsculo conferindo um toque personalizado ao painel.

Ao centro havia uma TV de LED e à direita, uma prateleira com seu PlayStation, controle DualSense, headset para jogos e óculos VR.

Na parede oposta à porta, uma ampla janela oferecia vista para a rua.

O lado direito do quarto abrigava sua cama, integrada a um guarda-roupa com gavetas na parte inferior e cinco portas superiores. Uma combinação perfeita para quem desfrutava de momentos de lazer e descanso.

Contudo, uma mesinha de lanche ao lado da janela foi uma proposta rejeitada por Teresa, que desejava vê-lo saindo do quarto para outras atividades. Mal sabia ela que Cris já realizava suas refeições na mesa do computador, após retornar da faculdade, enquanto ela estava no trabalho.

No primeiro dia em casa, Cris encontrou alguns amigos on-line, mas os jogos não fluíram como de costume. Além do tempo limitado que Cris considerava insuficiente, todos pareciam mais tímidos para conversar. Não havia gritos, brigas ou palavrões nos momentos tensos. Era como se estivessem todos agindo sob a sombra de uma plateia invisível. Quem poderia saber? A dinâmica do grupo, antes repleta de espontaneidade e intensidade, transformou-se em uma versão mais contida e polida, como se todos estivessem moderando seus comportamentos, cientes de que estavam sendo observados. O que antes era um ambiente de descontração e camaradagem agora exibia sinais de uma atmosfera tensa e auto censurada, deixando Cris intrigado com a mudança repentina na dinâmica das interações on-line.

No caso de Cris, sentia-se assistido on-line e presencialmente.

— Lembra que acordamos um limite de três horas, Cris,  incluindo o tempo de estudo? —  perguntava Teresa.

— Tudo certo, D. Teresa — respondia entediado.

Porém, a realidade mostrava-se diferente. Passado o tempo combinado, Cris imergia nos seus livros de programação, permanecendo no quarto.

A inércia era tanta que ao chegar o dia do Parque da Liberdade, ele preferiu não ir. Sua vida resumia-se a ficar naquele quarto durante todo o dia.

24 de fevereiro de 2024

Após um mês em casa, chega o novo dia do encontro e Cris surpreende a mãe, arrumando-se para ir ao Parque da Liberdade para encontrar os amigos ex-internos.

O Parque da Liberdade, nome do evento que ocorria quase quinzenalmente no conhecido Parque das Mangabeiras, impunha uma regra peculiar: dentro do parque, nenhum tipo de aparelho eletrônico, conectado à Internet ou não, podia ser utilizado. Antenas bloqueadoras de sinais de rede cercavam o parque, e armários com chaves na portaria permitiam aos visitantes guardar celulares, câmeras e tablets. Publicar fotos do evento em redes sociais era impossível, pois os aparelhos não entravam. Quem desejasse fotografar deveria frequentar o parque nos outros vinte e oito dias do mês.

Inspirado em projetos como a Rua é Nossa, que fechava vias urbanas para a prática esportiva nos fins de semana, o Parque da Liberdade buscava fomentar o esporte, a atividade física e o lazer, além de promover a convivência em espaços públicos.

Cris desceu do ônibus em frente ao parque, dirigiu-se ao caixa para pagar a chave do guarda-volumes e deixar seu celular.

Procurou por César, mas não o encontrou. “Que falha! Deveria ter enviado mensagem antes para ele perguntando se viria hoje…”, pensou. O paradoxo da comunicação dos jovens, capazes de trocar mensagens o dia todo sobre jogos e redes sociais, mas que pareciam falhar quando se tratava das coisas simples do dia a dia, destacava a ironia da comunicação moderna. Questões que a geração dos pais costumava se gabar: “Na nossa época, não tínhamos celular nem Internet, e os encontros eram combinados de forma muito mais eficiente.”  Mesmo com toda a conectividade, às vezes, a simplicidade de um aviso prévio se perdia, deixando Cris a refletir sobre os desafios da comunicação na era digital.

Ao entrar no parque, Cris se deparou com a Praça das Águas, repleta de crianças apreciando os tanques de carpas e os jatos de chafariz. Percorreu toda a praça, avistando um ou outro rosto conhecido de vista, mas que não havia se aproximado durante a clínica.

Subiu até o pequeno mirante para apreciar a vista da cidade. Antes de admirar a paisagem, aguardou uma mulher vestida de noiva fazendo fotos com a cidade ao fundo. Ao contemplar a cidade do alto, surpreendeu-se consigo mesmo, não se lembrava de quando tinha estado ali pela última vez.

As árvores do parque enquadravam a vista do mirante, tornando-a ainda mais espetacular. A cidade surgia ao fundo, em recortes entre a vegetação. A visão não convidava o espectador a admirar a cidade, mas trazia a beleza da paisagem para dentro de quem a observava. Cris se desligou do tempo, absorvido pela vista que o envolvia. Ao sair do Parque das Mangabeiras, a visão da cidade era renovada, tornando ruas movimentadas, lojas cheias, trânsito intenso e até muros pichados mais belos.

— Além de pilotar drones, também gosta de admirar a paisagem? — indagou um homem que se aproximou de Cris.

Cris levou um tempo para reconhecê-lo, mas logo percebeu que também estava na clínica e participava do mesmo grupo de dinâmicas. Com aproximadamente 35 anos, Cris não conseguia recordar seu nome.

— É tudo muito bonito, não é? —  perguntou o homem.

— Nu! —  respondeu Cris.

— Meu nome é Fernando, pode me chamar de Nando.

— Pode me chamar de Cris.

— Nunca o vi aqui, acho que nossos horários não coincidem.

— Praticamente a primeira vez que venho, desde criança. Costumo olhar a cidade pelo meu drone. Pena não poder trazê-lo hoje.

— E é melhor pelo drone?

— É diferente, com mais liberdade de alcance de imagem. Podemos dar zoom, é um vôo leve, mas não nos dá a mesma sensação.

— Bom encontrar você. Lembro que você falava de algumas ajudas que costuma oferecer pela Internet. Ainda trabalha nisso?

Nesse ponto Cris se animou mais:

— Claro, claro! E como precisa de ajuda?

— Pesquisas na Internet, logística de entregas, coisas difíceis pra mim que você deve fazer até dormindo. Podemos conversar sobre isso se quiser…

Assim passaram um bom tempo conversando, combinando como seria esse suporte. Era a forma mais fácil que Cris desenvolvia para ter novos amigos e contatos, e ainda ter alguma remuneração.

Só existia um novo problema para Cris: agora o tempo de consultoria estava inserido dentro de suas três horas diárias combinadas e esse problema, estava difícil de resolver. Então, não aumentaria muito mais sua base de clientes.

Trama Digital é uma obra com registro de direitos autorais.

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