Thriller policial

Trama Digital – Capítulo 1

Libertação

30 de janeiro de 2024

A iminência da saída da clínica envolvia Cris em um turbilhão de sentimentos: um emaranhado de revolta e alívio que permeava todos os seus pensamentos. Faltava apenas um dia para Cris se libertar do confinamento. Ansiava pela retomada de sua vida, deixando para trás as paredes que o aprisionaram por esse tempo. No entanto, ao contemplar essa libertação, questionava-se sobre o que o aguardava ao atravessar novamente os limites da realidade que conhecera.

Aos 19 anos, Cris cedeu às pressões e concordou em se internar por trinta dias em uma clínica de desintoxicação digital. Acreditava que seria uma tarefa fácil passar um mês sem o uso de equipamentos tecnológicos conectados à rede. Sua decisão não era apenas uma forma de acalmar as preocupações de sua mãe, que insistira tanto para que ele aceitasse esse período de reclusão, mas também uma tentativa de reconciliação com o mundo real.

Além de não se render completamente à ideia de se libertar do vício tecnológico, Cris arrependeu-se profundamente da internação. Contava os dias, minuto a minuto, esperando pelo momento em que estaria livre novamente. “Justo em janeiro, meu mês de férias da faculdade”, lamentava-se consigo mesmo. A escolha de realizar a desintoxicação durante esse período de descanso acrescentava um sabor amargo ao arrependimento que o consumia.

Cris era verdadeiramente apaixonado por jogos on-line. Nos raros momentos em que não estava imerso nessa atividade, dedicava-se ao estudo da linguagem de programação Python. Essa habilidade não apenas complementava sua paixão pelos jogos, mas também era aplicada no controle meticuloso de seu drone de estimação.

Quando saía de casa, muitos passantes poderiam interpretar erroneamente seu comportamento, pois, à primeira vista, parecia que Cris não desgrudava os olhos do celular. No entanto, a verdade revelava-se a 50 metros acima do solo, onde ele habilmente guiava seu drone, acompanhando-o silenciosamente. Levar o drone para passear tornou-se a única atividade ao ar livre capaz de motivá-lo a sair de casa, embora, ultimamente, o drone deslizasse para fora da janela de seu quarto enquanto ele o pilotava confortavelmente deitado em sua cama. Essa peculiar relação entre Cris e seu drone delineava um cenário onde o mundo virtual e o físico se entrelaçavam de maneira única e intrigante.

Por outro lado, a experiência na clínica representou um marco singular para Cris, registrando o reencontro com a construção de amizades “presenciais” pela primeira vez desde que concluiu o ensino fundamental.

E assim, de maneira assertiva e decidida, despediu-se dos novos amigos da clínica durante a última dinâmica de grupo naquele dia:

— Oi! Meu nome é Cris! Sou apaixonado por tecnologia, programação de computadores e jogos on-line. Minhas atividades não serão interrompidas, mas sim exercidas com melhor controle e planejamento do tempo. Estou ansioso para equilibrar o mundo virtual e o real, enquanto continuamos essa jornada juntos. Vou prosseguir com meu projeto de desenvolvimento de pequenos drones, mergulhar nos estudos de programação, que é meu hobby apaixonante, e seguir até a conclusão da faculdade. Além disso, continuarei minhas consultorias aos amigos, que se tornaram meu ganha-pão atualmente. Vocês podem contar comigo sempre que precisarem. Minha promessa é me tornar uma pessoa mais equilibrada no uso do meu tempo conectado. Até nosso reencontro, seja no Parque da Liberdade ou nas consultorias!

Essa última parte não era apenas um reflexo do progresso alcançado durante a internação ou uma resposta à preocupação de sua mãe; era, sobretudo, uma tentativa de manter conexões significativas com os novos amigos que conquistara naquele espaço de transformação.

Teresa, mãe de Cris, enfrentava uma relação conturbada com o filho. Seus esforços para se aproximar e dialogar eram frequentemente frustrados, pois Cris parecia interessado apenas no mundo virtual, alimentando as preocupações maternas.

A maneira como ele escolheu ganhar dinheiro, por meio das “consultorias aos amigos”, acabou aprofundando o distanciamento entre os dois. Cris comercializava seu tempo ensinando o uso de aplicativos, navegadores, editores de fotos ou vídeos, por meio de videoconferências, garantindo alguns trocados. Além disso, realizava manutenções de softwares em notebooks, instalando aplicativos ou formatando os dispositivos para reinstalação do sistema operacional. Os depósitos em PIX caíam quase diariamente, o que parecia positivo. Contudo, para Teresa, era difícil discernir se ele estava genuinamente trabalhando ou usando essas atividades como uma desculpa para permanecer mais tempo conectado. Era uma fuga para Cris. Sempre que ela insistia para que ele se desconectasse um pouco, afastando-se do computador ou do celular, ele recorria à desculpa de estar em uma consultoria. Ela não tinha como verificar a veracidade disso. No entanto, o instinto materno alertava que, na maioria das vezes, ele estava mentindo; afinal, as consultorias não eram tão frequentes quanto ele afirmava.

Os conflitos na relação entre Teresa e Cris atingiram um novo patamar quando ela tentou persuadi-lo a buscar um emprego e assumir um compromisso profissional, mesmo enquanto ele ainda cursava a faculdade. Para Teresa, a ideia era simples: se ele tivesse um emprego, sairia do quarto para trabalhar. Como uma conta de padeiro de Teresa.

— Mãe, quando eu me formar, eu procuro um emprego na minha área.

— Filho, você já pode trabalhar, tentar algo na mesma área que sua faculdade de tecnologia. Seria até melhor para criar relações de trabalho e adquirir experiência, mesmo que ainda vá iniciar o segundo período do curso…

Era uma conversa que se repetia incessantemente, sem conclusão, pois a fuga de Cris consistia em ameaçar com chantagem:

— Se for assim, então já falei, vou trancar a faculdade, mãe. Aí deixo para fazer a faculdade mais tarde, quando tiver um emprego. — E saía sem falar mais nada.

A dependência digital não era um problema isolado: estava prestes a se transformar em uma nova pandemia. Estudos revelavam que essa dependência era a causa de inúmeros distúrbios de ansiedade e depressão. Relatórios indicavam que esse vício estava por trás da queda no rendimento escolar, desde o ensino fundamental até o ensino superior, alertando para uma futura escassez de profissionais qualificados no mercado de trabalho. A preocupação se estendia para o futuro das profissões, questionando um cenário caótico caso todos os jovens buscassem se tornar influenciadores digitais. Somando a tudo isso, era crescente o número de profissionais vendendo cursos e treinamentos nas redes sociais, mesmo sem a experiência necessária nas áreas ofertadas. A verdade é que muitos não vendiam os treinamentos e sim, o seu tempo para monetização.

Essa conjuntura levou os governos ao redor do mundo a intensificarem o controle e monitoramento das atividades on-line. A transição do ano de 2023 para 2024 ocorreu em meio a um ápice de insatisfação popular. Em Belo Horizonte, assim como no restante do mundo, o cenário refletia uma preocupação crescente com os impactos da dependência digital e as medidas necessárias para mitigar seus efeitos.

Com a aprovação das novas legislações, todas as atividades realizadas pela Internet passaram a ser compartilhadas e consultadas pelas autoridades. Compras on-line, conversas telefônicas, jogos, mensagens de texto (sejam de aplicativos como WhatsApp, Telegram ou Instagram), e-mails, tanto corporativos quanto pessoais, podiam estar sob vigilância e serem registrados no Banco de Dados Nacional, uma extensa base de dados governamental que se tornou uma fonte de provas para a resolução de vários crimes. Não eram mais necessárias autorizações judiciais para a interceptação de conversas ou mensagens na Internet; a legislação permitia o armazenamento de dados de qualquer pessoa, suspeita ou não. Era o trabalho dos robôs de monitoramento atuando na Internet.

Além disso, se o tempo de uso contínuo em um mesmo jogo on-line ou aplicativo de entretenimento ultrapassasse uma hora, o aparelho automaticamente tinha sua conexão com a Internet bloqueada nas próximas duas horas. Os provedores enviavam uma mensagem de alerta obrigatória, acompanhada de um timer decrescente de 120 minutos, que ficava disponível no navegador.

A Agência Nacional de Vigilância Digital informa que o uso prolongado de Internet é prejudicial à sua saúde.
120:00

Para canais de Youtube classificados pelo governo como educacionais, o tempo permitido de uso era estendido para até uma hora e meia. Já para os aplicativos de streaming que transmitiam filmes, o tempo máximo autorizado era de até duas horas.

A comunidade de entusiastas de jogos precisava adotar estratégias para evitar o bloqueio. Cada pessoa tinha seu próprio método e Cris não era exceção. Ele alternava sessões de 55 minutos no PlayStation, seguidas por 55 minutos em algum jogo de celular e, por fim, dedicava mais 55 minutos ao estudo de programação em seu canal preferido no YouTube.

Em pouco tempo, vídeos no YouTube não ultrapassavam uma hora e filmes com duração superior a uma hora e cinquenta minutos nas plataformas de streaming eram disponibilizados em duas partes, como no caso do “Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei”. A adaptação à nova norma impactava diretamente a forma como o entretenimento digital era consumido.

Nesse cenário desafiador, Cris experimentava as dificuldades de se readaptar à sua vida anterior, de dois ou três anos atrás. Seus amigos “virtuais” pareciam cada vez menos conectados, e muitos deles nem mesmo acessavam mais os jogos. Uma simples partida de Fortnite, que antes começava rapidamente, agora demorava quase 15 minutos para se formar, devido à escassez de jogadores necessários para completar os 100 integrantes essenciais para o início do jogo.

Teresa acompanhava todas essas mudanças com crescente preocupação, refletindo sobre como poderia auxiliar seu filho. Ela dedicou tempo considerável pesquisando tratamentos e clínicas que estavam surgindo para oferecer novas abordagens às pessoas que precisavam de auxílio. Essas iniciativas não visavam demonizar a tecnologia, mas sim promover o entendimento de que é possível utilizar a Internet de maneira saudável, controlando o tempo on-line e dedicando-se a atividades alternativas, como assistir a filmes sem consultar o celular, ler livros físicos ou caminhar ao ar livre sem verificar constantemente as mensagens.

A clínica estava instalada na sede da antiga fazenda Pôr do Sol, localizada em Sabará, a pouco mais de trinta quilômetros de Belo Horizonte. Apesar de estar em uma área rural, a fazenda contava com antenas bloqueadoras de sinal de Internet, uma medida extrema para evitar que qualquer pessoa tentasse burlar o isolamento digital.

Para Cris, essa precaução representava uma segurança exagerada, evidenciando a falta de confiança nos clientes, quase tratando-os como “prisioneiros”. A descoberta dessa medida aconteceu logo no início, durante uma conversa com César, que  também estava internado e se tornou amigo de Cris.

— Talvez eles tenham razão, pois as antenas não são anunciadas e divulgadas em nenhum momento, Cris. Só descobrem as antenas os clientes que tentam alguma forma de conexão com a Internet — ponderou César.

— Nóóó… E você descobriu há muito tempo? — perguntou Cris.

— Logo no primeiro dia que cheguei, à noite, conversando com um dos funcionários que cuidava do jardim. São aqueles equipamentos ali, ó — apontou para o local indicado.

Riram ambos, sem graça e ao mesmo tempo, naquele dia. A descoberta da existência das antenas era um misto de surpresa e compreensão do lugar em que se encontravam. Contudo, o sentimento de estar voltando para casa dava-lhe um ar de alegria por sua “libertação”, que era maior que sua revolta interna por ter aceitado ficar esse tempo lá. Nessa alegria, prometeu a si mesmo participar ocasionalmente dos encontros quinzenais dos reabilitados, no Parque da Liberdade. Mas da clínica, saía para não mais voltar. Sua mala estava arrumada desde o dia anterior.

Trama Digital é uma obra com registro de direitos autorais.

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