Pipoca na panela
(Degustação livro Presença)
Valença é uma cidade com tradição religiosa em que muitas pessoas organizam seu domingo após o horário da missa e conforme os horários do ônibus. O vô José era assim.
Eu morava em um bairro um pouco afastado do centro, Esteves, apenas 6 quilômetros, mas distante o suficiente para organizarmos nossos compromissos pelos horários dos ônibus, que não eram muitos.
Era tão normal essa dependência do ônibus que, ainda hoje, eu acredito saber os horários daquela época. Valença possui duas rodoviárias: Floriano Sobral, para ônibus urbanos ou “coletivos”, com destino aos bairros da cidade, e a Princesa da Serra, destinada aos ônibus interurbanos, para destino a outros municípios, os ônibus “de viagem”. Da Floriano Sobral saíam os ônibus que iam até o bairro São Francisco passando por Esteves, nos seguintes horários: 05h40, 06h50, 08h50, 11h25, 12h40, 14h10, 17h40 e 22h30. Fora desses horários, havia uma opção que ia para Barra do Piraí, mas com saída da rodoviária Princesa da Serra, que fica mais longe do centro. Nada muito longe, em torno de 1 quilômetro de distância uma da outra. Os horários para Barra do Piraí eram a partir das 05h da manhã, de hora em hora, até as 21h e depois o último às 22h15.
Vô José organizava seu domingo após a missa e gostava de ir cedo. Então para ir à Catedral em Valença, meu avô preferia a missa de 07h30, que terminava próximo ao horário do ônibus de 08h50 e, muitas vezes, eu fui acompanhando meu avô.
O ano era 1984, eu me lembro que estava na quinta série. Eu disse para minha avó que iria mostrar para o vô que sabia o caminho e ia indicar onde ele deveria passar. Ele achava graça disso: da rodoviária Floriano Sobral à catedral a distância é de 400 metros apenas. O que eu queria era passar pela Rua dos Mineiros e não Visconde de Ipiabas onde ele sempre passava. E passou. Naquele dia, eu acompanhava o vô José.
Vô José era um homem metódico. Para ir à missa no domingo, escolhia sua roupa no sábado, engraxava seus sapatos, separava o dinheiro do ônibus e deixava tudo pronto na véspera.
Ele era um homem calmo. Calmo até demais. Queria ter herdado um décimo da paciência que ele tinha para planejar, executar e esperar. Tinha sempre um semblante sereno. Era realmente uma pessoa que poderíamos hoje usar a denominação popular “da paz”.
O vô era mais quieto, de poucas palavras, mas sempre muito carinhoso com as crianças. Os netos, ele chamava de “picorruchos”. Gostava de fazer nossas vontades. Às vezes sugeria algumas brincadeiras para nós ou até outras formas de fazer pipas, quando achava que as nossas não eram boas. Mas as dele eram muito difíceis. Imagine o trabalho que foi fazer pipa e ter que, antes, fazer a cola com farinha de trigo!
Vô José era um pouco exagerado nas suas execuções. Só um pouco. A característica dos exageros eu herdei, só um pouco, não posso reclamar.
Juntando as características de metódico, calmo e exagerado, algumas lembranças se tornaram engraçadas com o tempo.
Certa vez minha avó pediu para cortar um palmito no fundo do quintal lá de casa. O almoço de domingo seria galinha com palmito. Estávamos com visitas em casa, tio Beto e tia Elena, e meus primos Daniel e Fernanda estavam passando uns dias em Valença. Isso aconteceu em abril de 1982.
A maioria desses palmitos havia sido plantada, há alguns anos, pela minha avó. Eu a segui enquanto ela ia espalhando as mudas que brotaram dos coquinhos dos palmitos que ela deixou na terra adubada, preparada para isso. Eu sempre contei para todos que eu também havia plantado os palmitos. Formavam lindas palmeiras ao redor de todo o quintal (minha infância tem palmeiras…).
Então a vó Tiana já tinha escolhido o palmito, perto da parreira de uva e estávamos todos por lá esperando. Eu repetia aos presentes que plantei várias daquelas palmeiras. Minha avó já havia levado e deixado o machado próximo ao pé do palmito.
Meu avô saiu de casa e sentou-se na varanda. Carregava o par de botas Sete Léguas e algumas outras coisas.
Ele sentou-se, calmamente, vestiu um par de meias finas que primeiro esticou, depois enrolou da borda para baixo. Arregaçou a barra da calça, colocou a meia no primeiro pé e desenrolou esticando bem. Depois colocou a barra da calça esticada para baixo novamente, dobrando a sobra na parte de fora da perna, enrolando bem rente ao seu tornozelo e passando um barbante segurando a calça para ela não desenrolar. Um laço firme, com os dois lados do barbante de mesmo tamanho. Não era um barbante qualquer. Ele era grosso, específico para aquela finalidade, que meu avô guardava sempre junto às suas botas. Então colocou uma segunda meia, bem grossa, que ia até quase o seu joelho. Pôs o calçado e puxou a parte de cima da meia passando ao redor da borda da bota, prendendo em volta de toda a sua circunferência. Por fim, bateu firme o pé no chão. Então iniciou o processo com o outro pé. Meia fina, dobra da calça, barbante, meia grossa e borda da bota.
Calçou suas luvas de couro, colocou seu chapéu e foi até o pé de palmito, que a esta altura já estava derrubado no chão pela minha avó e pela minha tia, que não aguentaram esperar tanto tempo.
Vô José só balançava a cabeça e parecia não acreditar em tamanha imprudência, em sua concepção. Onde já se viu usar machado sem luvas e sem botas? Minha avó e minha tia estavam de chinelos. E com as crianças todas em volta…
Voltando ao domingo em que o acompanhei à missa, saímos da Catedral e descemos pela Domingos Mariano, rumo à rodoviária para tomar o ônibus de 08h50. Ao passarmos na esquina com Padre Luna, eu pedi:
— Vô, compra uma pipoca?
Ele respondeu:
— Vai lá e pergunta o preço da pipoca.
Perguntei e voltei. Não me lembro o preço que era. Mas entendi que o vô já sabia e só queria que eu também soubesse naquele momento. Ele riu e me disse:
— Vem comigo.
E começou a andar de forma calma e sorridente. Passou pelo pipoqueiro e seguiu, mas não falou nada. Desta vez passou pela Rua dos Mineiros, mas ao invés de ir para a rodoviária, seguiu para o outro lado da Nilo Peçanha. Eu não sabia aonde ele ia.
Assim, ele caminhou rumo à outra rodoviária, a Princesa da Serra. Pensei: vamos tomar o ônibus das 09h e vou ficar sem pipoca. Mas o vô ia feliz em seu planejamento.
Antes de chegar à rodoviária, ele entrou na feira, que ficava bem próxima. Rodamos ali bastante até que paramos em uma banca e ele fez seu pedido:
— Um quilo de milho alho, por favor.
Milho alho é o nome pelo qual meus avós chamavam o milho de pipoca. Os acostumados na roça, chegavam a pronunciar “milho ái”. Não vejo outras pessoas que chamem o produto de milho alho, mas na Internet é possível confirmar a nomenclatura.
E era um quilo pesado, comprado a granel, não um pacote pronto que encontramos no mercado. Claro que para fazer o pedido, o vô José parou, olhou, analisou o milho e deu sua aprovação.
E com isso não tomamos o ônibus das 09h, fomos no horário das 10h, o que aumentou um pouco minha ansiedade porque agora sim, eu teria a pipoca.
Chegamos em casa e vô José foi fazer a pipoca. Mas era o vô José. Significa que ele foi trocar de roupa calmamente, dobrar sua calça de sair e arrumar no cabide, colocar a camisa para lavar, limpar os sapatos e colocar para tomar ar antes de guardar, lavar demoradamente as mãos e o rosto. Demoradamente. Tudo demoradamente.
Só então começou a escolher uma panela para fazer a pipoca.
Mais um tempo depois e o vô surgiu na porta da cozinha, com uma pequena bacia plástica cheia de pacotes de pipoca. Os pacotes eram feitos com papel de pão, enrolados em formato de cone. Pipoca gostosa, estourada com manteiga e bem salgadinha. Manteiga caseira, feita pela minha avó com o leite que comprávamos diretamente da fazenda de Esteves.
Vô José distribuiu as pipocas para os três, eu e meus irmãos. Deixou os outros pacotes de pipoca na mesa, voltou à cozinha para buscar o saco de milho, praticamente cheio e disse:
— Comprei um quilo de milho com o valor daquela pipoca da rua. Dá para fazer umas oito panelas de pipocas dessa e de cada panela faço oito sacos de pipoca desses aqui[1]. Vocês podem cansar de comer pipoca agora. Mas eu já sabia disso, desde o outro carnaval.
E deu uma gargalhada!
“Desde o outro carnaval” era a expressão que o vô José usava significando há muito tempo.
Havia uma felicidade e satisfação no sorriso do vô muito grandes naquele dia. Ele estava radiante com seus ensinamentos. Fixei aquele momento para sempre!
Ainda bem que seus cálculos eram de oito panelas de pipoca e oito sacos por cada panela. Se as contas fechassem em sete, pode ser que não acreditassem na história.
Aprendi com o vô José que pipoca é para curtir em família, seja em casa ou não. Fazer pipoca para as crianças é um gesto de carinho.
Eu gosto tanto de pipoca de panela, feita em casa, quanto das pipocas dos pipoqueiros de rua, também das que são vendidas no cinema. Frequentemente, o pipoqueiro conhece o meu nome e das crianças.
Hoje eu só fico imaginando o que o vô José acharia das pipocas de micro-ondas…
[1] Curiosidade:
A razão encontrada pelo vô José entre o preço do milho e da pipoca pronta nas ruas foi conservada até os dias de hoje.
Segundo o vô José:
- 1 quilo de milho = 8 panelas de pipoca com 125 g de milho, cada.
- 125 gramas de milho = 150 g de pipoca = 8 pacotes de pipoca pequena.
Preço de um pacote de pipoca pequeno, em 2020, em BH: R$ 8,00.
Preço de um quilo de milho de pipoca, em 2020, em BH: R$ 7,00 .
Trecho degustação extraído do livro Presença (2022), capítulo 7, entre as páginas 73 e 84.